quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Vendas nos olhos da cara:.

Terminou a reunião, o slogan pensado, o logo pronto, nossos projetos de mudança e recrutamento encaminhados.
Era hora de correr atrás de "Lucky Stars" que havia encontrado no Ebay. Encontrei várias tirinhas numa loja oriental no meio da cidade-garoa, perto da vinteetrêsdemaio, por onde corriam os carros e eu fotografava o contraste vermelho e cinza das grades e do chão lá de longe, só de olhar. A mocinha educada da loja me contou que essas estrelinhas de papel são um símbolo de "lhe desejo sorte", quando feitas e dadas de presente a alguém num pote de vidro, caixinha ou móbile.
Já era tarde e fazia frio mesmo ali, debaixo do meu cachecol e da chuva fina por cima do guarda-chuva, o guarda-chuva por cima de mim, debaixo daquele céu cinza esbranquiçado alagado dali.
Próximo ao metrô, pilhas de caixas eram largadas numa esquina, um canto empilhado de sacos pretos que espalhavam um cheiro horrível de comida podre na sarjeta que se mexia.
Mas calma lá, sarjeta não se mexe - Porra, é uma pessoa, meu deus, meu deus! - fui dizendo perplexa, baixinho e pra mim. O espanto acabara de me fazer soltar um raro palavrão. Só não censuro esse tipo de vocabulário quando fora de sério, o que é mais raro ainda seguido por 'meu deus!'. Que deus, que nada, que porra nenhuma, o que era aquilo no chão sujo? Eu quase vomitando nos pés de alguém que fingia passar despercebido enquanto uma gente de verdade, sem piada ou piedade, era gente, almoçava com as mãos cada resto insuportável sobre o plástico preto rasgado, transbordando o podre do, os restos de, o fim do, as sobras das. Não era o cachorro que hora ou outra arranjava um canil, um gato que logo se enfiava num pedaço de pano, num rolo de jornal, na piedade de um novo dono. Era a lucidez perdida, a dignidade castigada, a vergonha de mal sobreviver aos pés dos passantes, o absurdo nosso de cada dia.
Não aguentei o cheiro ruim, logo me apressei, olhando pra trás sem saber se era homem ou mulher a tal gente mergulhada naquela situação em que comia com a mesma voracidade - se não maior - que meu estômago se contorcia, o coração dava um nó, a cabeça parada sem querer acreditar. Bastou um chute da realidade pra sentir a mediocridade roer uns pedaços meus. Meu tênis novo desfilando a marca na guia onde outro se esvaía, meu almoço sem tempo no microondas de casa, minha vontade de tomar posto contra o erro, o desigual, sendo requintada a cada dia até o azedume chegar através do mofo cinza de um ser que nada mais era além de chão junto ao concreto.
Cheguei em casa contando estrelas, analisando minha sorte, contente por elas todas, angustiada aos breves encantos de metrô em qualquer pedaço de papel de bolso. Ao comentar o que vi, com meu pai, ouvi dizer sem muito pesar:
-Você tem que entender que existem lugares onde não se deve ir, coisas que não precisa ver isso. É o que acontece. Só isso que eu te digo.
-Não, pai, não é assim. A gente não vive e não pode aceitar que vivam isso. Não devem existir lugares assim, pessoas assim. E outra, a gente não dá valor, sabe, não sabe dar valor ao suficiente. Não é algo pra ser evitado, mas resolvido.

Medíocre e despercebido é aquele chão colado no sapato, os sãos e salvos, o som dos saltos altos. Até minhas estrelas quem sabe, tempo gasto em pequenas distrações. Mas ainda quero o que há de bonito nos sapatos meus e dos sãos e salvos, nos sons, dar meus saltos sem me importar de que altura.
Quero muito, mas não só pra mim, meu caro; sorrir sozinha é disfarçar a solidão.

Um comentário:

La Moranga disse...

Acho que nossos posts coincidentemente são de revolta, e ao mesmo tempo de egoísmo, desigualdade e fome; cada um ao seu ponto específico, porém com a mesma dor. Seu texto conseguiu me emocionar.

Minha protegida, estás escrevendo a cada dia melhor e de maneira mais bela. Parabéns!