domingo, 7 de setembro de 2008

Permissão:.

Tênis, calça jeans e camiseta. Uma bicicleta, óculos escuros, dez reais e um celular com pouco crédito.
Eu era tudo o que eu tinha quando, depois de encher a cara de sorvete passas ao rum resolvi ir embora. Quis sair, não fugir, nem pra sempre. Só quis me ver livre das paredes, do bege da casa, já não bastassem minhas camisas cáqui. Querendo me ver livre, soube que apenas isso, mais nada, poderia me completar. Disseram pra eu voltar antes de anoitecer, pra tomar cuidado, não sair do bairro... Em vão.


Fui sem olhar pra qualquer relógio, acelerando e tomando a rua, queria a cidade só pra mim, assistindo as nuvens ameaçarem passeata de chuva, não me importei. Fui sem saber pra onde, só não queria voltar atrás, também não iria ficar ali. A ventania me inspirou coragem, fui encontrar as vias expressas da cidade. Primeiro o centro, lugar mais próximo; lembrei da tranqüilidade dos domingos na praça da matriz, com árvores de outono, simpáticas, que gosto de ver e, ao chegar lá, me deparei com um comício político-evangélico na frente da igreja católica, onde puseram um palco mal feito na grama com pessoas fazendo onomatopéia e rap, junto a vários cavalos, e seus estercos, e seus olhinhos tristes, e suas cordas, e seus donos, e meia dúzia de gente ignorante cercada de viaturas municipais, abanando as mãos como numa reunião primitiva. Só faltou o mamute destroçado no meio do passeio público.

Eu ri.

Mentira, não ri. Eu quase entrei em pânico, afinal, como no meu domingo, meu dia de cidade vazia, invadiram o lugar bonito de passar pra fazer algazarra?
Se for assim, melhor procurar outro lugar. Pensei um pouco, as lojas fechadas, aquelas pessoas... Fui me atirar na avenida lateral, Faria Lima, sem trólebus, sem ônibus, só alguns carros e, por alguns instantes, eu fui feliz acelerando os pedais.
Por um quarteirão, pra ser mais exato. Chegando à esquina cores me tomaram. Música bate-estaca, balões coloridos, meia rua fechada, meia dúzia de gente fingindo que tava dançando e arrasando, outra metade olhando em volta. Era a parada gay de São Bernardo. E eu nem sabia que tinha parada aqui, muito menos hoje. Vendo duas meninas paradas, parei a bicicleta e perguntei até que horas duraria. Uma delas me olhou, os olhos encharcados, o lápis borrado, aparelho nos dentes, devia ser mais nova do que eu. Fez sinal de quem não sabia, enquanto continuava desolada reclamando “dela”, com a amiga. Coitada. Tive vontade de conversar, dizer que as coisas não são assim, que tudo passa e todas as outras coisas que a gente sabe que é verdade, mas nessas horas não dá nem pra tentar acreditar. Deixei pra lá, a menina imatura, a literalmente Parada, o trio elétrico de três caras com sunga de oncinha e meias, o mundo.

Eu ainda tinha dez reais, um celular, uma bicicleta. Eu ainda me tinha, ainda bem. Resolvi atravessar a cidade, segui em frente na avenida sem fluxo. Passei pelas calçadas pequenas do Paço municipal, fiquei dando voltas e mais voltas no lugar onde, entre tombos e traumas, aprendi a andar numa bike de rodinhas, rememorando os dias.
Ultrapassei o semáforo, os carros, me deixando levar, caindo na Vergueiro. Tinha dez reais e o único lugar onde poderia encontrar um fone de ouvido que já estava precisando havia uma semana em pleno domingo, era o supermercado em Rudge Ramos. Nunca tinha me atrevido a pedalar tão longe do Jardim, o dia logo ia embora, mas eu queria. Eu queria me sentir livre, e melhor, e inventar uma situação onde eu estivesse sozinha no meio do mundo. E estive. Fui pelo meio do concreto, aquele lugar que seus pais dizem que é perigoso andar, sabe? Exatamente ali. Entre a ida e vinda de todos, eu me via fazendo sentido algum, em busca de simplesmente nada, achando tudo muito engraçado e improvável. Os rastros de esterco estavam pela cidade toda, inclusive na faixa de pedestres da entrada do supermercado.
Já no estacionamento, me aproximei do bicicletário. Eu, minhas três coisas e nenhum cadeado. Ia arriscar e fingir, com alguma das correntes, que tinha amarrado a magrela ali, pronto, iria, compraria, voltaria, tudo no mesmo pretérito. Tudo muito rápido. Fui olhando todos os cantos, disfarçando, quando três garotos pararam e eu resolvi perguntar se seria perigoso deixar ali, sem nada. Eles ofereceram o cabo de aço com o qual prendiam as três bicicletas, dizendo que uma a mais não faria diferença.
Também não demorariam lá dentro, era só um sorvete e poderiam me acompanhar.
Quanta gentileza.
Fomos conversando, comprei o fone, ajudamos uma velhinha a guardar as compras no carrinho e, ao voltar ao estacionamento, a trava de segurança, com as quatro bicicletas dentro, havia estourado quando colocaram a chave. Éramos quatro desesperados, agora. Vi um chaveiro. Um dos garotos, dono da trava, disse que já tinha problemas com aquilo algumas vezes, mas que o miolo do cadeado nunca tinha se esfarelado daquele jeito, ali. Corri até o chaveiro, um moço educado, que, com um alicate do tamanho da roda presa, cortou e abriu a corrente. Libertamos as pequenas, senti culpa pelo cadeado do menino, perguntei se ele queria outro, se eu poderia fazer alguma coisa. Ele disse que tinha outros, que eu poderia ir que a gente se vê de bike por aí. Eu disse “ah, então valeu, obrigada”, e vim embora, antes de virar abóbora, meu fone na sacola, sem dinheiro, sem pânico, no meio da avenida sem carros, com sede, eu não beberia o celular, parecia que ia começar a chover.

Eu corria, pedalava com força, conforme a velocidade aumentava mais minhas pernas doíam. Parava os pedais, vendo o concreto correndo debaixo de mim. O vento, o vento. Perdendo tudo de vista, pensando longe, passando perto da guia, sem direção, exatamente como um eremita faria. Pensei tanto que quando me vi estava de volta ao Paço, próxima ao bairro. Via mais gente, os casais nos bancos, menininhas novas com garrafas de smirnof, rindo em grupos ao lado da guarita municipal. Adolescentes, imaturos, com cabelos coloridos, angustiados, reclamando em palavrões e gírias tudo o que achavam injusto. Passei por todos os lugares de antes, dessa vez mais cansada. Desviei a rota de volta até a subida mais alta e soltei as mãos lá do alto, sentindo o perigo dos carros prestes a receberem o sinal verde e, talvez, me engolirem no meio do cruzamento. Mesmo assim fui sentindo todo o gosto da incerteza do que nunca tinha feito. Cansada de não arriscar porque diriam algo, isso, aquilo. Tive sede de chuva, ganhei nuvens e o sol já ia se pondo. Atravessei outros quarteirões, cheguei ao portão com a cara mais lavada. Quando perguntaram onde eu tinha ido, respondi com uma risada imperdoável: “Longe.”.

Lembrei de uma promessa que me fiz, de fazer com que tivesse um ano de uma rotina inusitada.
Aqui estou sendo fiel comigo, com tudo, contudo.

Quando foi a última vez que você se deixou ser?
Agora pensa e responde, não pra mim.

E que a semana seja doce.